terça-feira, 27 de abril de 2010

Entrevista com Alfredo Jerusalinsky - Parte I

IHU On-Line - Em entrevista concedida ao nosso site em 09-03-2007, o senhor fala que a queda de crenças como “a união faz a força, a liberdade de um acaba onde começa a do outro, a felicidade está no amor (que necessariamente passa pelo outro)” nos deixa desorientados. Como esse desencantamento se relaciona com a autonomia do sujeito na pós-modernidade?
Alfredo Jerusalinsky – A bússola do sujeito muda seu norte. Se até pouco tempo ele se orientava na procura de um outro para decidir seu destino face àquilo que a sociedade demandava dele, hoje – na pós-modernidade – ele anda na incessante procura de um objeto que venha lhe garantir um gozo da máxima intensidade. Dito de outro modo, se o problema central de todo sujeito antes era como se representar no discurso social, hoje sua bússola sofreu a torção para o encontro com a satisfação de suas demandas corporais. A demanda social passou para um segundo lugar. De tal modo – no que se refere à autonomia – que ele mesmo perfaz seu próprio nome sem que o nome recebido do Outro tenha maior valor.

IHU On-Line - Como o senhor define o homo automaticus? Quais são os pontos de aproximação e as diferenças com o homo sapiens?
Alfredo Jerusalinsky – Se situarmos o homo sapiens como aquele primata que deu esse passo fundamental para o domínio da linguagem, recalcando suas pulsões a serviço de uma aliança fraterna ordenada por um saber simbólico sobre o gozo, teremos que nos perguntar quais serão os efeitos da perda de consistência desse gozo simbólico quando se coloca no trono um gozo real. Quando o gozo se situa na ordem simbólica, isso significa que não é necessário experimentar para saber: a linguagem nos assegura um saber que, na medida em que ele provém de uma memória da espécie armazenada nos signos lingüísticos (memória que costumamos designar como “cultura”), poupa a cada um de passar pela experiência. Até as crianças mais pequenas sabem disso: quando a mãe lhes oferece uma comida nova, elas podem responder que não gostam, apesar de nunca tê-la experimentado. A ordem simbólica ancorada na linguagem nos permite deduzir o lugar e o valor das coisas e dos outros sem nunca tê-los visto ou tocado. É assim que podemos saber que algo falta, sem termos registro de que é. Tais são as razões desse “homo” para merecer no nome de “sapiens”.
Quando se dá prevalência ao corpo como coisa a ser satisfeita – ou também como coisa a ser privada de satisfação –, são seus automatismos que passam a ocupar o centro da cena. Seja pela prevalência de um prazer absoluto, seja pelo martírio da privação, o corpo se torna protagonista e, então, seus automatismos passam a comandar a vida do sujeito. Este se torna escravo, paradoxalmente, dos artifícios que inventa (sejam científicos ou religiosos) para se desembaraçar da responsabilidade sobre seu destino. Na medida em que o saber já não está mais no sujeito, mas no artifício automático que ele mesmo criou (trate-se de suas descobertas neuroquímicas, da informática, dos artefatos eróticos ou dos sistemas dogmáticos de crenças ou cosmogonias), ele passa a merecer o nome de homo automaticus. A robótica aplicada como complemento corporal é um dos paradigmas desse conceito que acabo de propor, e, como é bem sabido, ela nos apresenta uma série interminável de problemas éticos.

IHU On-Line - E quais seriam os possíveis enlaces entre gozo e saber nesse homo automaticus?
Alfredo Jerusalinsky – Como acabo de afirmar, nesse homo automaticus, o que parece destinado a tomar o comando das coisas hoje em dia, o saber consiste numa repetição fechada que assegure um gozo real. Se é esse gozo que se procura, nada melhor, então, que reduzir tudo a uma engenhoca ou a um dogma, ambos garantindo uma repetição sempre igual e automática. Deve-se notar que, ultimamente, há importantes tentativas de reconciliação entre a religião e a ciência. Tentativas que se fundamentam nesse acordo estratégico de elevar os automatismos ao lugar de comando (embora os automatismos propostos não sejam da mesma natureza). Pelo seu lado, o fundamentalismo aposta seu saber na repetição automática das escrituras sacralizadas pelo homo sapiens. Ocorre que este último vivia com tantas dúvidas que precisou colocar em algum lugar a esperança de alguma verdade indiscutível. Se a religião, pelo seu lado, o fez nas sagradas escrituras, Descartes a situou no pensamento: “cogito ergo sum”, o que, paradoxalmente, cancelou sua “dúvida sistemática”.
Na medida em que o paradigma cartesiano colocou como núcleo do pensamento moderno o suposto de que todo saber é transformável em conhecimento (o que quer dizer, dotado de parâmetros que permitem materializá-lo calculá-lo), os saberes se transformaram em pequenas certezas. Habitamos num mar delas, tão pequenas que não alcançam para nos dar certeza de nada. Por isso, passamos a gozar de uma ilusão vasta e generalizada de saber o que, em verdade, ignoramos.

IHU On-Line - Se progresso é um sinônimo para felicidade, podemos dizer que o saber virou sinônimo de gozo? Por quê?
Alfredo Jerusalinsky – Um momento! Eu não disse que progresso seja realmente um sinônimo para a felicidade. Eu referi que essa é uma crença própria da modernidade. Mutatis mutandis, hoje tal crença se deslocou para a suposição de que o gozo seja sinônimo de felicidade. É difícil saber por que aconteceu tal coisa. Podemos formular algumas hipóteses: a ciência evoluiu de tal modo na modernidade que facilitou a crença de que os aproveitamentos tecnológicos de suas descobertas poderiam assegurar aos humanos que nada lhes faltaria. Outra hipótese na mesma trilha: a confiança cega na razão como fonte exclusiva de verdade levou a um reducionismo logicista (em termos euclidianos ) do pensamento, o que teve como conseqüência uma ilusão de domínio total do mundo em que vivemos. Talvez se trate simplesmente de um retorno do corpo mesmo ao centro da cena, depois de ter sofrido séculos de recalque e repressão.

domingo, 18 de abril de 2010

Corpos estreitamente vigiados II


A modernidade resulta de um longo processo de disciplina e de auto-observação dos corpos. O Processo Civilizador, do sociólogo alemão Norbert Elias, é uma minuciosa investigação sobre a gênese da formação do que é hoje, para nós, o corpo civilizado normal. A socialização das crianças pequenas, desde as primeiras formações das sociedades de corte, consistia (como ainda hoje) no aprendizado de uma série de controles corporais. Aprende-se desde cedo como é que se anda no meio dos outros, como é que se come em presença de estranhos, como se controlam os impulsos corporais em público. A criação da moderna esfera privada nas sociedades liberais é indissociável da introjeção dos mecanismos de controle dos impulsos e dos afetos, na vida pública. Freud considerava o desenvolvimento de uma instância psíquica encarregada do auto-controle como um avanço da civilização. A auto-disciplina afetiva e corporal é condição do engajamento dos sujeitos na ordem social, diria Foucault, para quem a submissão voluntária é o braço subjetivo do poder. O auto-policiamento permanente é o preço a ser pago pela vida moderna, sobretudo nas cidades.
Mas houve uma transformação importante nos termos desse controle, acompanhando a mudança do capitalismo, desde a fase produtiva do início do século XX até a fase consumista dos nossos dias. Passamos de uma economia psíquica do adiamento do prazer para outra, do imperativo do gozo. A moral do self made man foi substituída pela moral do body-building. Isto não significa que em nossa era os corpos em exibição no mercado da imagem não estejam submetidos a formas de controle talvez tão rigorosas quanto as que torturavam os monges medievais. Fazer do corpo uma imagem oferecida ao olhar crítico do Outro exige muita disciplina, muito controle e, sim, muita repressão.
A quietude contemplativa, assim como a fruição sexual, só são possíveis se o corpo não estiver permanentemente vigiado pelo eu, auto consciente da imagem que pretende apresentar em público. Não devemos confundir a dimensão libertária do desejo com a dimensão superegóica da cultura do narcisismo corporal. Jean-Jaques Courtine detectou uma continuação do puritanismo na cultura norte-americana do body-building . Para Courtine, a sanha do fisioculturismo que data dos anos 1980 “não corresponde a um laisser-aller hedonista, mas a um reforço disciplinar, a uma intensificação dos controles. Ele não corresponde a uma dispersão da herança puritana, mas antes a uma repuritanização dos comportamentos cujos signos, de modo mais ou menos explícito, multiplicam-se hoje”.
Hoje, o chamado amor próprio depende da visibilidade. Não se trata apenas da beleza. Não basta ter um rosto harmonioso, um corpo bem proporcionado. É preciso aumentar a taxa de visibilidade, ocupar muito espaço no mundo. É preciso fazer a imagem crescer. Inflar os bíceps, as nádegas, os peitos, aumentar as bochechas, esticar o comprimento dos cabelos. A receita de beleza no terceiro milênio deve ser: muito tudo.
Não importa que com isso as mulheres fiquem mais ou menos parecidas com os standarts oferecidos pelos esteticistas. Um homem pode olhar as moças no bar ou na fila do cinema e classificá-las pelas características das intervenções que elas fizeram: seios de silicone, olhos arregalados por botox, cabelos alongados, lifting, dentes branqueados. Do ponto de vista delas o que importa é garantir um lugar de destaque nas vitrines do mercado das imagens.
Seria ingenuidade criticar a nova onda das formas siliconadas em nome de um ideal de corpo natural. O corpo humano nunca foi natural. As tribos mais primitivas se distinguem umas das outras pelas alterações estéticas, simbólicas e rituais nos corpos de seus membros. Do botox aos botocudos, do silicone às anquinhas, das escaras às tatuagens atuais, os corpos humanos são sempre desnaturados pelas práticas culturais. O que há de novo é o poder da tecnologia intervir cada vez mais na estrutura dos corpos, e o poder do marketing, que torna essas intervenções quase imprescindíveis. Não deixa de ser irônico que o padrão estético imposto pela tecnologia mais avançada se assemelhe ao dos corpos femininos do século XIX: s nádegas protuberantes, modeladas nas academias, substituem as anquinhas; as barrigas lisas imitam as cinturinhas de vespa obtidas com o uso de espartilhos. As filhas do pós-feminismo não medem sacrifícios para atrair os olhares masculinos. Ou a inveja das outras mulheres. Ou a aprovação do espelho, esta versão caseira da telinha.
E a prova dos nove do sucesso, qual será? O acesso aos mistérios do sexo e do desejo sexual? Não creio. O desejo não se dirige à perfeição, dirige-se ao enigma. Quanto ao erotismo, será que o sexo praticado entre os bombados e as siliconadas é mais interessante, mais inventivo, mais sacana do que o sexo entre pessoas fisicamente comuns? Conseguiremos ser, ao mesmo tempo, escravos da imagem e mestres da libertinagem? XXI já perderam de vista a divindade à qual oferecem seus sacrifícios. A forma contemporânea da acedia medieval é o tédio que vitima jovens casais, apartados do saber inconsciente sobre o desejo sexual na medida em que obedecem cegamente à exigência superegóica de construir um corpo reduzido à dimensão de imagem sem interioridade, sem história, sem nenhum vestígio das imperfeições da vida.

Maria Rita Kehl

quinta-feira, 15 de abril de 2010

“Quando a dor de não estar vivendo
fica maior que o medo de mudar,
a pessoa muda.” (Freud)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Mas tenho medo ...

"Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação". ClariceLispector

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Corpos estreitamente vigiados - Parte I

"O prazer, em nossa era, está intimamente vinculado ao movimento e à atividade. Os corpos pós-modernos têm que dar provas contínuas de que estão vivos, saudáveis, gozantes. Ao trabalho, moçada! A quietude não tem nenhum prestígio na era da publicidade, das raves embaladas a ecstasy, dos filmes de ação. Estamos liberados para usufruir todas as sensações corporais, mas para isso o corpo deve trabalhar como um escravo, como um remador fenício, como um condenado a trabalhos forçados. Anorexias, bulimias, seqüelas causadas pelo abuso de anabolizantes e de moderadores de apetite sinalizam a permanente briga contra as tendências do corpo a que se entregam, sobretudo, os jovens, numa sanha disciplinar de fazer inveja ao pobre Santo Antonio.
Tão longe, tão perto. Temos a liberdade, ou melhor, temos a obrigação de nos permitir todos os prazeres sexuais. Seria ótimo, se não fosse obrigatório. Quem não conhece o caráter desmancha-prazeres até das práticas mais libertinas, quando impostas pelo superego? Seríamos livres se não nos sentíssemos obrigados a dar provas permanentes de nossa capacidade de gozar. Seríamos mestres do hedonismo se não estivéssemos tão vigilantes em relação às performances sexuais, tão preocupados com as menores imperfeições de um corpo que se oferece ao outro como pura imagem. Seria ótimo, enfim, se estes corpos estreitamente vigiados não tivessem perdido algumas de suas capacidades básicas, essenciais ao próprio prazer. [...]"

Maria Rita Kehl

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Tatuagem, as marcas no corpo.


Quando o horizonte do que desejamos aparece anuviado, quando a linha do futuro se encolhe sobre nosso presente, os códigos que mapeiam nossos objetos faltantes não têm espaço nem tempo para se desdobrar. Quando, como hoje, as referências fálicas se diluem numa infinidade de recortes, cuja equivalência de valor se mede pelo gozo, a ordem simbólica se torna contingente. O que quer dizer que o sujeito não somente pode, mas se vê obrigado a trocar de sinthome¹ a cada passo.
Não é de estranhar, então, que ele deva apelar a escrever sobre seu próprio corpo as marcas que o identifiquem. Um modo de outorgar permanência àquilo que não a tem. Dito de outro modo, gravar uma marca que ninguém, jamais, consiga mudar.
Homens e mulheres – nesse ponto participam do mesmo sinthome – apelam igualmente a piercings e tatuagens. Isso demonstra que ambos estão afetados pela mesma angústia de dissolução de seu campo de desejo. [...] o sujeito a perfurar ou retalhar seu corpo para torná-lo testemunha de sua existência, uma tentativa de subverter a “desordem simbólica”.
(Alfredo Jerusalinski)

¹ Op. cit.: “O que pela primeira vez defini como sinthome é o que permite ao simbólico,
ao imaginário e ao real se manterem juntos, ainda que nenhum deles se sustente já
com o outro...” (Lacan, p. 67).