segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O eu é um outro I

A experiência do confronto com o Real pode produzir efeitos diversos. O Real é, por definição, aquilo que a linguagem exclui. O impossível de simbolizar. Para o psiquismo, há três elementos do Real que não se pode evitar: a mãe primordial, o sexo e a morte. Esta última, para nós, é sempre a morte do outro: nada podemos dizer desse encontro ao qual, quando comparecemos, já não somos. Sempre faltamos, como seres falantes, ao encontro marcado com nossa própria morte. No entanto, sua proximidade nos coloca diante dos enigmas do funcionamento do corpo; o mistério dos órgãos silenciosos, do fluxo sangüíneo, do peristaltismo, do entra-e-sai do ar nos pulmões.
Podemos incluir, na série do que a linguagem exclui, o encontro com a crueldade extrema do outro, este mal radical, fragmento de gozo que também nos diz respeito embora permaneça inconcebível e, por isso mesmo – real.
Em psicanálise, chamamos trauma o efeito do Real sobre o psiquismo. Mas nem todo trauma nos condena ao silêncio. Ao contrário: ao redor do ponto negro do qual não é possível dizer nada, produzimos uma torrente de palavras.Os sobreviventes de cataclismos naturais, os egressos de campos de concentração, os que se viram diante da presença do Mal, os que enfrentaram a morte, não conseguem parar de falar nisso. Não cessam de tentar inscrever no campo simbólico os limites de sua experiência. Foram atravessados – como no sexo! – pela presença de um outro, um eu alheio ao eu, um fragmento do duplo que a palavra persegue, mas não capta jamais.
Algo da experiência mística, e da experiência poética, também se traduz assim. “Eu é um outro”, escreveu Rimbaud a seu amigo Paul Demeny:

Car je est un autre. (...) Cela m´est évident: j´assiste à l´eclosion de ma pensée: je la regarde, je l´écoute: je lance um coup d´archet: la symphonie fait son remuement dans lês profondeurs, ou vient d´un bond sur la scène.

O poeta denuncia a estupidez dos que acreditam no significado falso da palavra eu, e ri da crença desses esqueletos que se acreditam autores do que escrevem. Para Rimbaud, muito antes de Freud, a palavra do poeta vem deste outro que desmente a pretensão soberana do eu individual, burguês.
Mas nem sempre o encontro com o outro de fora da linguagem nos transforma em poetas. Freqüentemente, o blábláblá a que nos entregamos, e que pede desesperadamente o testemunho de alguém – seja um amigo generoso, um confessor, um psicanalista – não tem nenhuma qualidade literária.
José Maria Cançado está entre os raros abençoados que se tornam poetas em conseqüência de um trauma. Em 2004, seu coração esteve gravemente enfermo; José Maria foi salvo da morte por um coração alheio. Um outro, literalmente, veio habitar seu corpo que a partir desse momento não pode se dizer eu sem duvidar: mas eu, quem?

No transplante não dá para saber
o que é carbúnculo, o que é diamante.

A poesia, a rigor, não precisa da biografia do poeta para se sustentar. Se a experiência do transplante e o longo período de UTI não tivessem acontecido, este pequeno livro seria, da mesma forma, uma refinada obra da língua e da imaginação. Mas o autor quis revelar, na nota final, o episódio que deu à luz o poeta. O que torna sua poesia ainda mais surpreendente. Às vezes, são necessários muitos anos para que uma experiência traumática se transforme em literatura. É o que escreve Jorge Semprúm no prefácio ao seu A grande viagem, explicando por quê, só 16 anos depois de ter passado por Auschwitz, foi capaz de escrever sobre o que viveu ali.
O que surpreende é que José Maria tenha começado a escrever ali mesmo, na Unidade de Terapia Intensiva do SUS, enquanto se recuperava da cirurgia e esperava que o novo habitante se adaptasse à nova casa.

Valente, na radiografia
é possível vê-lo alojado desde ontem
ocupando sua banca
como um verdureiro recém instalado
vindo de outros dias e noites
e outras festas de São João.

É provável que a pressa da poesia fosse resposta à urgência da nova tarefa. A palavra do poeta revisita os mistérios do corpo, já não mais arquivado “sob a turquês da morte” e sim ressignificado pela presença do novo passageiro. Ou será o contrário, o coração novato o próprio motoneiro a conduzir o eu-corpo através da multidão que o habita?
Maria Rita Kehl

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