quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O peso da feminilidade





O que têm em comum a arte, a psicanálise e a feminilidade?
Que as três andem às voltas com a falta – até aí, nada de novo.
Mais vale dizer que a partir da falta, ou do vazio, ou de como
quer que se nomeie isto que não há, tanto a psicanálise
quanto a arte são expressões do inacabado – o que faz com
que só existam em estado de constante mutação.
A feminilidade, não como aquilo que é próprio das mulheres
mas como aquilo que sabe gozar um pouco além do falo,
nem sempre se põe mutante -
mas tem certamente este potencial.
Uma vez que não gira (apenas) em torno do falo,
pode arriscar movimentos
centrífugos em direção a não sei onde.
Uma vez que não se constitui a partir
de uma obsessão em evitar a castração,
a feminilidade é um modo de gozar
que pode arriscar um pouco mais na direção
de uma desmesura, ou seja,
que aceita correr o risco de esbarrar na angústia,
ou mesmos de ir um pouco além.
Daí que, é claro, todo artista, seja homem ou mulher,
acaba (ou começa) por
saber algo a respeito da tal feminilidade.

Na obra de arte autêntica o artista inventa sempre.
Uma vez terminada, a obra torna-se outra coisa.
Pois, de uma forma ou de outra, a arte é sempre um começo.
Quem disse isto não foi uma mulher: foi Picasso.
Um que agüentava melhor do que ninguém o desafio
de começar do nada, a partir da sucata, do lixo,
do papel rasgado, e produzir – sobretudo em sua escultura –
não o monumental mas o efêmero, não o objeto pronto e
acabado que simula a Coisa mas uma coisa,
despretensiosa - assim mesmo, com letras minúsculas.
[...]
O campo da arte interroga a psicanálise, desloca nossas certezas,
nos obriga sempre a repensar a teoria - como escreve
Jaime Betts, é importante que as questões que a obra de arte
suscitam possam permanecer em aberto. Assim, encerro este
prefácio afirmando que, diante da arte, seja ela obra de homem
ou de mulher, todas as nossas certezas a respeito da mínima
diferença que é condição do desejo sexual caem por terra.
Deixemos que os artistas continuem a falar disso e a
nos fazer rever a teoria. Mas saibamos também que a
melhor interpretação para uma obra de arte nunca
se dá no campo da teoria; a melhor interpretação para
uma obra de arte há de vir, sempre, de outra obra de arte.
(Maria Rita Kehl)

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