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Levante a mão quem nunca teve o azar de ser amado pelas razões erradas. Eis uma experiência capaz de produzir a angústia de quem se depara com um duplo de si mesmo: o espelho do olhar do outro te devolve uma imagem que parece sua, mas na qual você não se reconhece. Claro que ninguém ama com objetividade. O que o amante vê no ser amado é sempre contaminado pela fantasia. Não me refiro, então, à impossibilidade fundamental de complementaridade entre os casais, mas aos encontros que se dão na base do puro mal entendido. Sentir-se amado por qualidades que o outro imagina, mas não têm nada a ver com você, pode ser muito angustiante. E sedutor. Vale lembrar que a palavra sedução indica o ato de desviar alguém de seu caminho: eis que chega a roda viva e carrega o destino prá lá.
Pensava essas coisas de meu lugar na platéia lotada do Credicard Hall (que nome para um teatro, caramba!) onde fui ver o show de uma de minhas cantoras favoritas no momento: Maria Gadu. Para quem não conhece, Maria Gadu despontou em 2009 na cena musical com uma força que não se via desde a década de 90, quando surgiram cantoras do porte de Marisa Monte e Cássia Eller. O cd que leva seu nome está a muitos meses na lista dos mais vendidos. O que não quer dizer grande coisa: muita gente boa nunca entrou nessa lista e muito lixo musical freqüenta os primeiros lugares. É certo que ter emplacado uma canção na novela das oito deu um empurrãozinho, mas a novela acabou e o cd, que tem onze faixas além de “Shimbalaiê”, continua firme nas paradas. Às vezes o talento encontra seu espaço.
Definir uma voz é quase tão difícil quanto definir um cheiro. Para a experiência olfativa usamos com freqüência analogias com os sabores: os cheiros podem ser doces, amargos, ácidos. Ou são cheiros de: flor, mar, rato, gasolina, parede. Para as vozes, temos a classificação tradicional entre sopranos, barítonos, tenores, contraltos. Imagino que a cantora em questão seja contralto, o que não define grande coisa. Dizer que a voz é rouca também não nos salva da imprecisão. Rouca como o que: uma pedra que raspa na lousa ou um motor a diesel? Um fumante terminal ou Marlene Dietrich? A imagem que me ocorre para a voz de Gadu é a de uma lixa muito fina a filtrar o som que passa por ela, vindo do fundo de um poço. Uma imagem esquisita, concordo. Ainda bem que para os argentinos (que entendem de vozes roucas), “esquisito” quer dizer raro. E raro quer dizer esquisito, mas não tem importância.
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Maria Rita Kehl
quinta-feira, 29 de julho de 2010
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