domingo, 31 de janeiro de 2010
Mal estar na diferença
São quebras, rupturas, demolições, que podem variar em ritmo e intensidade, mas que acontecem forçosa e repetidamente ao longo de nossa existência. Impossível evitá-lo: tais quebras são o efeito de uma implacável disparidade entre, de um lado, a infinitude do ser enquanto pura produção de diferença e, de outro, a finitude dos modos de subjetivação em que se expressam as diferenças, cristalizações provisórias do ser formando figuras, o humano propriamente dito. Tal disparidade é constitutiva da subjetividade: ela define o caráter trágico de nossa condição, a palpitação do transhumano no homem. Não há como se desfazer desta disparidade, muda apenas o modo como se lida com o trágico e as cartografias que se delineam a partir daí.
As diferenças adensam-se como nuvens negras. Escurecem nosso mundo. É verdade que seu acúmulo progressivo anuncia o relâmpago do acontecimento - a passagem do transhumano (plano virtual, constituido pelos problemas gerados pelas diferenças em suas aglutinações) para o humano (plano atual, constituido pelos modos de existência criados como resolução para os problemas colocados no virtual). Mas o instante que antecede o relâmpago parece não ter fim: somos lançados numa espécie de vácuo.
O salto na turbulência do transhumano produz mal-estar. Para nos proteger, fazemos sintomas - formações existenciais de compromisso que funcionam como solução contemporizadora. De um lado, neutralizam as diferenças, poupando-nos de enfrentar suas exigências, o que atenua momentaneamente nosso desassossego e abre possibilidades de vida. De outro lado, porém, esquivar-se tem seu custo: um desvigor do processo de construção experimental da existência, através da qual atualizam-se as diferenças. A doença psíquica é exatamente este desvigor - força de resistência contra a finitude das figuras em que nos reconhecemos.
Se as diferenças não continuassem a nos desassossegar, poderíamos ficar assim ad infinitum. Mas elas insistem através do mal-estar e é isso o que eventualmente nos leva a procurar uma análise.[...]
Suely Rolnik
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e como dizia Lacan: a angústia é a única fonte de criação!
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