sábado, 29 de maio de 2010

Quais são os efeitos dessa exclusão (forclusão) do sujeito nas relações
que estabelecemos com os outros? – pergunta-se Hassoun (1997). O autor
afirma que, na paixão, o sujeito é capturado pelo outro a ponto de se deixar
despossuir de sua subjetividade pela imagem apaixonante na qual ele é a presa.
Na melancolia, o sujeito é tragado pelo terror e espanto diante de sua própria
indignidade, mergulhando num abismo de perplexidade, apatia e crueldade que
o despossui de seu desejo, de sua fala e de sua voz, dando voltas infinitamente
em seu enigmático desastre interior.

No caso do ódio, o sujeito que é sua presa acaba devorado pelo horror
que o outro lhe suscita e passa obstinadamente a tentar destruir essa suposta
causa de sua indignidade. Obsedado por essa ideia, o sujeito persegue por
todos os lados o obscuro e estranho objeto de seu ódio, para melhor destruir o
outro. Primeiro, o outro estrangeiro, portador do significante da diferença, e,
portanto, invasor em seu território narcísico. Progressivamente, o círculo de ódio
vai se estreitando aos mais próximos, atingindo familiares, bem como a si mesmo
(Hassoun, 1997, p. 13-14). Tal como no conto de Poe mencionado acima.

No ódio ao estranho-estrangeiro, seja pela exacerbação do imaginário
especular nas relações sociais, seja pelo surto alucinatório de retorno ao real da
alteridade simbólica forcluída, as consequências são mortíferas.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Pais sem rumo, crianças sofridas


"[...] É evidente que existem famílias tranqüilas, pais e mães equilibrados e protetores. Mas a família moderna, fechada sobre si mesma, toda voltada para a produção de bem estar, fundada nas formas mais egoístas de amor, é um canteiro propício, no mínimo, à violência psicológica. Os filhos frustram as expectativas dos pais, o amor vira moeda de barganha e chantagem mútua, a esperança de entendimento de parte a parte é freqüentemente obstruída pela culpa que cada um sente por não amar o outro tanto quanto devia.
Apesar disso, não existe nenhuma outra instituição que a substitua. Desejamos formar família, viver em família, criar condições de convívio protetoras, agradáveis. Mas lembrar que se a família, em seus moldes tradicionais, fosse um mar de rosas, Freud não teria criado a psicanálise.
Se a criança é desamparada frente aos que cuidam dela, os adultos de hoje também se sentem desamparados no exercício de suas funções. A vida contemporânea está tão privatizada, tão indiferente a valores ligados ao bem comum, a sociedade tornou-se tão narcisista e infantilizada, que o bem estar das crianças tornou-se praticamente o único ideal dos adultos. Ser “bom pai” tornou-se a razão de viver de adultos que perderam as referências para saber tanto o que é ser “bom” quanto o que é ser “pai” (ou “mãe”). Se os filhos se tornam o único ideal de seus pais, estes não têm mais nada a lhes transmitir a não ser “seja feliz” – isto, numa sociedade em que felicidade se mede pela capacidade de consumo e diversão.
O desamparo do adulto diante das exigências dos filhos, a quem eles próprios prometeram dar “tudo de bom e de melhor”, tem resultados patéticos ou, no pior dos casos, trágicos. Algumas crianças, híper estimuladas e excitadas, ficam cada vez mais insatisfeitas e agressivas enquanto os pais, incapazes de estabelecer limites para a farra que eles mesmos prometeram, vivem exasperados, culpados, impotentes – e às vezes, tão fora de controle quanto os pequenos. Um adulto que se vê incapaz de educar uma criança é capaz de confundir autoridade com violência, poder simbólico com coerção física.
Vez por outra, um desses pais incapazes de colocar limites em seus filhos também corre o risco de perder seus próprios limites. "

Maria Rita Kehl

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Análise

Você está em análise?

Por Jorge Forbes

Você está em análise? Etâ perguntinha difícil de responder; vejamos. Primeiro, não basta você dizer que vai a um psicanalista bem titulado, tantas vezes por semana. O carteiro do analista também vai lá com frequência e nem por isso está em análise. Ficou conhecida a história de um paciente que após um bom tempo diz a "seu analista" que está chegando ao fim de seu trabalho. Este lhe responde: - "Engano seu, penso que o senhor está prestes a começar". Entrar em análise é mudar de posição subjetiva: a pessoa para de referir suas queixas às cenas atuais de seu cotidiano e passa a se entender em uma "Outra Cena", como dizia Freud. Isso é difícil de conseguir, pois a realidade sempre alivia o comprometimento de cada um em seu mal-estar, razão pela qual muitas pessoas adoram viver um inferno de vida. Se quisermos traduzir em conceito, entrar em análise é sair de uma moral dos costumes e se instalar na ética do desejo.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Sobre os contos de fada


A função das narrativas maravilhosas da tradição oral poderia ser apenas a de ajudar os habitantes de aldeias camponesas a atravessar as longas noites de inverno. Sua matéria? Os perigos do mundo, a crueldade, a morte, a fome, a violência dos homens e da natureza. Os contos populares pré-modernos talvez fizessem pouco mais do que nomear os medos presentes no coração de todos, adultos e crianças, que se reuniam em volta do fogo enquanto os lobos uivavam lá fora, o frio recrudescia e a fome era um espectro capaz de ceifar a vida dos mais frágeis, mês a mês.
As modernas versões dos contos de fada, que encantaram tanto nossos antepassados quanto as crianças de hoje, datam do século XIX. São tributárias da criação da família nuclear e da invenção da infância tal como a conhecemos hoje. Isto implicou em:
1: a progressiva exclusão dos pequenos do mundo do trabalho, na medida em que a Revolução Industrial criou espaços de produção separados do espaço familiar (o segundo era característico das organizações do trabalho artesanal e campesino)
2: os ideais iluministas e os novos códigos civis trazidos pelas revoluções burguesas passaram a reconhecer as crianças como sujeitos, com direito tanto a proteções legais específicas quanto ao reconhecimento de uma subjetividade diferenciada da dos adultos.
Assim, a infantilização das narrativas tradicionais, transformadas nos atuais “contos de fadas”, é concomitante à criação de um mundo próprio da criança e ao reconhecimento de uma “psicologia infantil”, da qual mais tarde a psicanálise viria a se destacar radicalmente.
Os autores deste Fadas no divã, o casal Diana Lichstenstein Corso e Mario Corso, sabem de tudo isso. Na linha inaugurada pelo psicanalista austríaco Bruno Bettelheim , afirmam que a capacidade de sobrevivência dos melhores contos de fadas, que continuam encantando crianças das gerações dos computadores, videogames e jogos de RPG, consiste em seu poder de simbolizar e “resolver” os conflitos psíquicos inconscientes que ainda dizem respeito às crianças de hoje. A leitura da pesquisa detalhada e delicada que o casal Corso conduz ao longo deste livro nos faz ver que o atual império das imagens não retirou a força das narrativas orais.
É provável que as técnicas de transmissão oral, que na falta de imagens visuais apelam ao poder imaginativo dos pequenos ouvintes, sejam até hoje capazes de conectar as crianças ao elemento maravilhoso e à multiplicidade de sentidos que caracterizam o mito em todas as culturas e em todas as épocas formando, na expressão dos autores, um “acervo comum de histórias” através do qual a humanidade reconhece a si mesma.
Neste sentido os autores, que também são pais e contadores de histórias, têm a sabedoria de não esgotar pela explicação psicanalítica todos os elementos que compõem a magia dos contos de fadas. Pudera: Diana e Mario Corso não entraram no mundo das histórias infantis por puro interesse intelectual; entraram conduzidos pelas mãos de suas duas filhas. Por isso mesmo, sabem o quanto é ingênua a pretensão de se propor uma única chave de entendimento para as histórias, uma vez que as crianças sabem utilizar os contos à sua maneira e segundo suas necessidades: “como era usado o mito nas sociedades antigas. (...) A criança é garimpeira, sempre procurando pepitas no meio do cascalho numeroso que lhe é servido pela vida”. Além disso, como psicanalistas, compartilham da paixão da psicanálise pela fantasia, resolutiva de conflitos, constitutiva de identidades, criadora de espaços psíquicos tão reais e potentes quanto a dita realidade da vida. Os psicanalistas levam a infância a sério. No caso de Diana e Mário Corso, à paixão pelo universo infantil soma-se o gosto literário pelos contos de fada. Com isso, os autores cumprem a mais importante das cinco condições propostas por Fernando Pessoa para um crítico literário: a simpatia.
Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar .
Munidos de indiscutível simpatia por seu objeto, na interface entre a psicanálise e a literatura, os autores vêm contribuir com a ousada proposta de preencher um vazio na área da crítica de literatura infantil no Brasil.
Diana e Mario Corso não são tradicionalistas. Reconhecem que, nas últimas décadas, o poder das comunicações no mundo globalizado acelerou um trabalho de transmissão de histórias que levou séculos de tradição oral, no ocidente. A extensa análise apresentada neste livro contempla, desde os tradicionais contos de fadas coletados na Europa pelos irmãos Grimm e por Charles Perrault, até os atuais e cinematográficos Harry Potter, Turma da Mônica e Senhor dos Anéis, encerrando com os heróis dos melhores cartuns contemporâneos: Mafalda, Peanuts e Calvin. Segundo os autores, do ponto de vista do ouvinte infantil, não faz muita diferença se a história é passada ou contemporânea. Os contos que aparentemente não correspondem a questões do mundo atual interessam à criança, sempre aberta a todas as possibilidades da existência e capaz de identificar-se com os personagens mais bizarros e as narrativas mais extravagantes. Como a criança ainda não delimitou as fronteiras entre o existente e o imaginoso, entre o verdadeiro e o verossímil (fronteiras estabelecidas, em parte, pelo recalque das representações inconscientes), todas as possibilidades da linguagem lhe interessam para compor o repertório imaginário de que ela necessita para abordar os enigmas do mundo e do desejo.[..]

Maria Rita Kehl

domingo, 16 de maio de 2010

Doze perguntas sobre o inferno - Parte I

"Nem Deus consegue perdoar o Diabo", responde o psicanalista argentino Alfredo Jerusalinsky quando questionado sobre as relações entre o Mal, a vingança e a memória no caso da ditadura da Argentina. Para ele, "o único modo de apagar o desejo de vingança é que desapareça por completo qualquer vestígio do sistema de poder que causou e legitimou esses crimes, que o povo que foi cúmplice castigue e repudie definitivamente seus autores, e não mais os mantenha sob uma auréola de heróis injustiçados, acaçapados na espera de uma brecha para ocupar novamente algum lugar na história". O mínimo que devemos é manter viva a memória de quem sucumbiu sob a bota da ditadura.

Vivendo no Brasil há muitos anos, quando veio em busca de ares de liberdade, e ao vivenciar a perseguição e morte de inúmeros intelectuais, seus companheiros, ele desabafa: "Quando passo por um café de Buenos Aires, vejo meus amigos que não estão sentados aí. Quando me convidam a dar uma aula na Universidade de Buenos Aires, de repente, encontro-me com um sobrevivente ou com um exilado que retornou, nos abraçamos, olhamos em volta e vemos que os jovens estão esperando que comecemos a dar nossa aula. Começamos a falar para os jovens, e, sem que eles o saibam, também falamos para essa geração (a nossa) ausente e congelada no meio da sala como um puro fantasma". Em seu ponto de vista, só se pode falar em um "esfriamento", e não em uma reconciliação nacional: "O que ocorre é que as pessoas que passaram por isso, e sobreviveram, inevitavelmente morrerão. E, sem dúvida, os sentimentos dos mortos são bem mais frios que os dos vivos". Na entrevista concedida com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail, Jerusalinsky debate, também, a profusão de filmes que retratam os horrores das ditaduras e do Holocausto. "Os filmes, como os livros, podem mostrar a realidade sem realizá-la".

Jerusalinsky é psicanalista, mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e doutor em Educação e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo - USP. Além disso, é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da Association Lacaniènne Internationale. De sua vasta bibliografia, destacamos La formación del psicoanalista (Buenos Aires: Editora Nueva Visión, 1989), Psicanálise e desenvolvimento infantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998), Para entender al niño, claves psicoanalíticas (Quito: Ediciones ABYA-YALA, 2003) e Quem fala na língua?: sobre as psicopatologias da fala (Bahia: Ágalma, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Do ponto de vista da psicanálise, de que forma podemos compreender o lado oculto do ser humano, o mal que é contido a duras penas e que floresce em ocasiões como o Holocausto e nas ditaduras sangrentas da América Latina, por exemplo?

Alfredo Jerusalinsky - A civilização nasce por um pacto de não agressão entre os irmãos que assassinaram o pai da horda primitiva, estabelecendo regras para a circulação das fêmeas. Se, a partir desse ato, a vigília da fratria passou a ser um pouco mais tranquila, doravante os sonhos daqueles homens primitivos ficaram bem mais agitados: o pai morto, ora transformado num agressor intangível, retornava naqueles desde as sombras imaginárias. Homenagens, rituais, sacrifícios, autoflagelações, cerimônias e oferendas foram inventadas para apaziguar sua fúria e acalmar suas vinganças. Em todas as religiões, os deuses, em algum momento, sofrem uma ofensa, e os homens, causadores dela, tornam-se culpados e merecedores de castigo e constrangimento. Perdas, privações e sofrimentos representam o poder desses deuses assim como suas dádivas e premiações. Capazes de impor as dores mais atrozes e os prazeres mais almejados, é, no mínimo, curioso o quanto os deuses das mais diversas culturas possuem as mesmas paixões que caracterizam os humanos. Por isso, sempre ficou tão fácil estabelecer representantes dos deuses na Terra, e justificar os atos desses representantes como intermediários das vontades de Deus. O Estado nasce como representante desse Grande Outro, Pai onírico pleno de autoridade porque lhe devemos a vida. Não a nossa, mas a dele (leve-se em conta que qualquer Estado se considera no direito de exigir de seus cidadãos que defendam sua existência ainda ao custo de suas vidas). Esta estrutura inconsciente de características paranóicas que define o modo do laço social civilizado facilita, naqueles que acedem a posições de poder, o desdobramento de delírios messiânicos e a obediência cega de seus comandados. A posição messiânica torna o sujeito em questão representante da única versão possível do bem. Portanto, para ele, toda e qualquer diferença que seja meramente enunciada constitui um mal radical que deve ser extirpado. Tal a posição do Führer Adolf Hitler na Alemanha, e do Presidente General Rafael Videla na Argentina, ou de Pinochet no Chile.

terça-feira, 11 de maio de 2010

LUTO


"O teste da realidade revelou que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto. Essa exigência provoca uma oposição compreensível - é fato notório que as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já se lhes acena. Esta oposição pode ser tão intensa, que dá lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo.

Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o desligamento da libido se realiza em relação a cada uma delas. Por que essa transigência, pela qual o domínio da realidade se faz fragmentariamente, deve ser tão extraordinariamente penosa, de forma alguma é coisa fácil de explicar em termos de economia. É notável que esse penoso desprazer seja aceito por nós como algo natural. Contudo, o fato é que, quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido [...] Cada uma das lembranças e situações de expectativa que demonstram a ligação da libido ao objeto perdido se defrontam com o veredicto da realidade segundo o qual o objeto não mais existe; e o ego, confrontado, por assim dizer, com a questão de saber se partilhará desse destino, é persuadido, pela soma das satisfações narcisistas que deriva de estar vivo, a romper sua ligação com o objeto abolido.
Talvez possamos supor que esse trabalho de rompimento seja tão lento e gradual, que, na ocasião em que tiver sido concluído, o dispêndio de energia necessária a ele também se tenha dissipado".

(Freud, 1914 - Luto e Melancolia)

domingo, 9 de maio de 2010

ADOLESCÊNCIA E CONTEMPORANEIDADE


"O que é adolescência? Definir adolescência por uma coordenada temporal é um modo de
simplificar as coisas que não respondem àquilo que normalmente conceitualizamos como adolescência. Preferiria partir da idéia de que a adolescência é um estado de espírito, independentemente da idade. Se é atribuível uma posição adolescente com autonomia da idade, situar-nos na idade para definir adolescência não parece ser um procedimento muito sensato.

O que quer dizer um estado de espírito adolescente? Um estado juvenil, talvez, indeciso. O que caracteriza o que chamamos adolescência, independentemente da idade, é a indecisão. Não uma indecisão qualquer, mas uma indecisão que se encontra na beira de se decidir. É um estado de indecisão de iminente decisão, não é um estado pacífico, é um estado de instabilidade visível, perceptível, não é um estado de status quo, não é um estado de tranqüilidade e equilíbrio; pelo contrário, é um estado turbulento, pela iminência da decisão.

Evidentemente, há conotações cronológicas que situam esse estado num momento típico da vida, embora o parâmetro não seja exatamente o mesmo para as diferentes culturas. Porém, em qualquer cultura, há uma passagem entre a infância e a vida adulta que atravessa esse estado de indecisão que convoca a um iminente desfecho. Essa passagem vai do estado de proteção, que caracteriza a infância, ao estado de exposição, que caracteriza o adulto. O adulto é um ser exposto, porque cada um de seus atos e de suas palavras tem conseqüências. Na vida adulta, não dá para “fazer de conta”, enquanto que a infância caracteriza-se por “fazer de conta”. Entre esse “fazer de conta” pleno que caracteriza a infância e essa impossibilidade de “fazer de conta” própria do adulto, há uma passagem que se situa cronologicamente de modo variável nas diferentes culturas.

A criança deixa de estar submetida a uma lei ad hoc, especificamente perfilada para ela. Entre essa posição de particularidade da lei, que caracteriza a infância, e essa posição de estar exposto à lei de todos, que caracteriza a vida adulta, há um momento de exceção chamado adolescência, que tem como pivô a iminência de um desfecho do estado de indecisão, pela passagem de uma vida protegida a uma vida exposta.

A palavra adolescência fala de adoecer, fala de um sofrimento que é próprio da perda de proteção, inevitável na medida em que esse “fazer de conta” deixa de existir e passa a ter conseqüências, em que a passagem da proteção à exposição determina um sofrimento.

Mas o que temos que nos perguntar é se, além dessa diferença, além da variabilidade dessa fase em termos cronológicos, diferente em cada cultura, podemos encontrar alguma particularidade que caracterize os grupos que passam por essa fase em consonância com as transformações sociais e culturais que se dão em cada época. Dito de outro modo: será que o que varia é somente a cronologia de situação de acordo com a circunstância cultural e civilizatória, ou muda algo do conteúdo mesmo, daquelas representações em que o sujeito adolescente se reconhece? O problema de todo sujeito, sem exceção – a única exceção que podemos fazer é no campo da patologia grave, ou gravíssima, como na demência, nas esquizofrenias mais graves ou em casos de autismo -, é como se representar no discurso social, ou seja, o que valem seus atos e o que valem as suas palavras no discurso social. O que valem quer dizer o que simbolizam. [...]"

Alfredo Jerusalinsky

sábado, 1 de maio de 2010

Entrevista com Alfredo Jerusalinsky - Parte II


IHU On-Line - Quais são as principais conseqüências da hiperacionalização realizada em diversas instâncias da vida pós-moderna e de que modo o gozo e o saber estão imbricados nesse otimismo teórico ilimitado tão característico de nossos dias?
Alfredo Jerusalinsky – Que a razão conduz à felicidade é uma ilusão que rapidamente se desmancha. Basta perguntar a um casal, quando estoura uma briga entre os parceiros, se lhes serve, a cada um deles, ter razão. Certamente não é por essa via que vão se reconciliar. O mesmo acontece nas mais amplas relações sociais. Quando a razão destrói os mitos em que se alicerça a consistência simbólica de uma determinada cultura, aparece aí um tipo de verdade que, por lançar ao centro da cena o real recalcado, provoca efeitos arrasadores nesse conjunto social. Rapidamente, então, se fabricam novos messianismos, para substituir, na sua função de recalque, os horrores revelados na queda das antigas crenças destituídas pelo hiper-racionalismo.

IHU On-Line - Como e por que a ilusão de autonomia absoluta inclina as pessoas a uma ética individualista? Corremos o risco de nos tornarmos uma sociedade de indivíduos e pensar a autonomia apenas como um sinônimo de individualismo?
Alfredo Jerusalinsky – Sua pergunta é interessante porque ela mesma afirma a existência desse risco. Estou de acordo. Porém, cabe assinalar pelo menos duas questões. A primeira é sobre o conceito de ética. Se colocamos a ética como “o sujeito se fazer responsável das conseqüências que seu ato tem para o outro” (citando Jacques Lacan) - definição que eu faço minha –, como poderíamos falar em ética tratando-se do individualismo? Devemos atentar aqui ao fato que o termo “individualismo” é portador de um “ismo”, o que quer dizer que cada vez que houver um conflito entre o indivíduo e o conjunto social haverá tomada de partido pelo indivíduo. Tratar-se-ia, então, de uma sociedade em permanente erosão. Eis aqui a segunda questão: colocando em jogo o princípio de o sujeito se responsabilizar pelas conseqüências do ato sobre o outro, não estaríamos garantindo o respeito do indivíduo, sem necessidade de tomar partido? Devemos reconhecer, contudo, que as paixões humanas não são tão ponderadas.

IHU On-Line - Que patologias psicológicas podem surgir dessa postura egóica assumida pelas pessoas atualmente?
Alfredo Jerusalinsky – Novamente, você assinala um ponto importante, a saber, a dilatação do ego. Essa, precisamente, é uma das características da paranóia : tudo o que acontece em volta o sujeito imagina que está dedicado a ele. Seja como beneficiário ou prejudicado, o sujeito contemporâneo se coloca como credor de um gozo inusitado, e, ao mesmo tempo, como ameaçado pelo gozo do outro. Assim é que coloca grades pontudas ao redor de sua moradia, situa seu corpo como inimigo que deve ser controlado por medicações que eliminem suas ameaças e anseia entrar em corporações que o protejam. Esse fundo paranóide, com que o sujeito hoje em dia se sociabiliza, costuma tomar diversas formas: a hipocondria generalizada (alguém que saiba me defender das ameaças vindas do corpo), formas obsessivas (a delimitação minuciosa dos espaços), defesas histéricas (como as da ciência: “nada tenho a ver com o desejo”), a bulimia (devorar o mundo inteiro para me constituir numa totalidade na qual não falta nada), a toxicomania (como resistência a depender do outro), a anorexia (ser nada para impedir o registro de que algo falta), e uma intensa fobia do semelhante (sob formas de racismo, xenofobia, guerras santas etc.)

IHU On-Line - Nessa mesma entrevista ao nosso site, o senhor afirma que a população do planeta todo se sente hoje politicamente mal representada. Como entender essa má representação frente à autonomia do sujeito em escolher seus representantes? Por outro lado, como podemos compreender a apatia política presente em boa parte dos eleitores no mundo afora?
Alfredo Jerusalinsky – Quando se fala em representação de um sujeito por outro, em seguida tropeçamos num problema grave: sempre haverá uma distância entre o desejo do representado e a interpretação que, desse desejo, fará o representante. Esse mal-entendido inevitável, porém, fica amortecido quando o representante, pelo fato de reconhecê-lo, consulta incessantemente o representado. A maior dificuldade surge quando o representante, uma vez eleito, acredita encarnar, ele mesmo, o desejo de seu representado, o que quer disser que ele confunde seu desejo e sua própria satisfação com a de seu representado. Passa então a gozar da legitimação de qualquer forma de sua satisfação pessoal (chamada vulgarmente de corrupção ou abuso de poder), acreditando que, com isso, seu representado ficará feliz ou, ao menos, indiferente. Essa é a filosofia dos reis: eles acreditam que seu luxo e magnificência, que sua festa, constitui a felicidade de seu representado. Isso se chama “gozo do outro”. Simplesmente nos sentimos mal representados porque estão gozando de nós. Ocorre que os representantes, de um modo geral, levam demasiado a sério a sua própria autonomia: se tornam autônomos de qualquer versão do Outro social.