sábado, 1 de maio de 2010

Entrevista com Alfredo Jerusalinsky - Parte II


IHU On-Line - Quais são as principais conseqüências da hiperacionalização realizada em diversas instâncias da vida pós-moderna e de que modo o gozo e o saber estão imbricados nesse otimismo teórico ilimitado tão característico de nossos dias?
Alfredo Jerusalinsky – Que a razão conduz à felicidade é uma ilusão que rapidamente se desmancha. Basta perguntar a um casal, quando estoura uma briga entre os parceiros, se lhes serve, a cada um deles, ter razão. Certamente não é por essa via que vão se reconciliar. O mesmo acontece nas mais amplas relações sociais. Quando a razão destrói os mitos em que se alicerça a consistência simbólica de uma determinada cultura, aparece aí um tipo de verdade que, por lançar ao centro da cena o real recalcado, provoca efeitos arrasadores nesse conjunto social. Rapidamente, então, se fabricam novos messianismos, para substituir, na sua função de recalque, os horrores revelados na queda das antigas crenças destituídas pelo hiper-racionalismo.

IHU On-Line - Como e por que a ilusão de autonomia absoluta inclina as pessoas a uma ética individualista? Corremos o risco de nos tornarmos uma sociedade de indivíduos e pensar a autonomia apenas como um sinônimo de individualismo?
Alfredo Jerusalinsky – Sua pergunta é interessante porque ela mesma afirma a existência desse risco. Estou de acordo. Porém, cabe assinalar pelo menos duas questões. A primeira é sobre o conceito de ética. Se colocamos a ética como “o sujeito se fazer responsável das conseqüências que seu ato tem para o outro” (citando Jacques Lacan) - definição que eu faço minha –, como poderíamos falar em ética tratando-se do individualismo? Devemos atentar aqui ao fato que o termo “individualismo” é portador de um “ismo”, o que quer dizer que cada vez que houver um conflito entre o indivíduo e o conjunto social haverá tomada de partido pelo indivíduo. Tratar-se-ia, então, de uma sociedade em permanente erosão. Eis aqui a segunda questão: colocando em jogo o princípio de o sujeito se responsabilizar pelas conseqüências do ato sobre o outro, não estaríamos garantindo o respeito do indivíduo, sem necessidade de tomar partido? Devemos reconhecer, contudo, que as paixões humanas não são tão ponderadas.

IHU On-Line - Que patologias psicológicas podem surgir dessa postura egóica assumida pelas pessoas atualmente?
Alfredo Jerusalinsky – Novamente, você assinala um ponto importante, a saber, a dilatação do ego. Essa, precisamente, é uma das características da paranóia : tudo o que acontece em volta o sujeito imagina que está dedicado a ele. Seja como beneficiário ou prejudicado, o sujeito contemporâneo se coloca como credor de um gozo inusitado, e, ao mesmo tempo, como ameaçado pelo gozo do outro. Assim é que coloca grades pontudas ao redor de sua moradia, situa seu corpo como inimigo que deve ser controlado por medicações que eliminem suas ameaças e anseia entrar em corporações que o protejam. Esse fundo paranóide, com que o sujeito hoje em dia se sociabiliza, costuma tomar diversas formas: a hipocondria generalizada (alguém que saiba me defender das ameaças vindas do corpo), formas obsessivas (a delimitação minuciosa dos espaços), defesas histéricas (como as da ciência: “nada tenho a ver com o desejo”), a bulimia (devorar o mundo inteiro para me constituir numa totalidade na qual não falta nada), a toxicomania (como resistência a depender do outro), a anorexia (ser nada para impedir o registro de que algo falta), e uma intensa fobia do semelhante (sob formas de racismo, xenofobia, guerras santas etc.)

IHU On-Line - Nessa mesma entrevista ao nosso site, o senhor afirma que a população do planeta todo se sente hoje politicamente mal representada. Como entender essa má representação frente à autonomia do sujeito em escolher seus representantes? Por outro lado, como podemos compreender a apatia política presente em boa parte dos eleitores no mundo afora?
Alfredo Jerusalinsky – Quando se fala em representação de um sujeito por outro, em seguida tropeçamos num problema grave: sempre haverá uma distância entre o desejo do representado e a interpretação que, desse desejo, fará o representante. Esse mal-entendido inevitável, porém, fica amortecido quando o representante, pelo fato de reconhecê-lo, consulta incessantemente o representado. A maior dificuldade surge quando o representante, uma vez eleito, acredita encarnar, ele mesmo, o desejo de seu representado, o que quer disser que ele confunde seu desejo e sua própria satisfação com a de seu representado. Passa então a gozar da legitimação de qualquer forma de sua satisfação pessoal (chamada vulgarmente de corrupção ou abuso de poder), acreditando que, com isso, seu representado ficará feliz ou, ao menos, indiferente. Essa é a filosofia dos reis: eles acreditam que seu luxo e magnificência, que sua festa, constitui a felicidade de seu representado. Isso se chama “gozo do outro”. Simplesmente nos sentimos mal representados porque estão gozando de nós. Ocorre que os representantes, de um modo geral, levam demasiado a sério a sua própria autonomia: se tornam autônomos de qualquer versão do Outro social.

Um comentário:

  1. Aria Helena Machado Gastaud Oliveira3 de novembro de 2013 às 21:34

    Excelente entrevista!
    Admiro o ineditismo psicanalítico de Alfredo Jerusalisky!

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