domingo, 16 de maio de 2010

Doze perguntas sobre o inferno - Parte I

"Nem Deus consegue perdoar o Diabo", responde o psicanalista argentino Alfredo Jerusalinsky quando questionado sobre as relações entre o Mal, a vingança e a memória no caso da ditadura da Argentina. Para ele, "o único modo de apagar o desejo de vingança é que desapareça por completo qualquer vestígio do sistema de poder que causou e legitimou esses crimes, que o povo que foi cúmplice castigue e repudie definitivamente seus autores, e não mais os mantenha sob uma auréola de heróis injustiçados, acaçapados na espera de uma brecha para ocupar novamente algum lugar na história". O mínimo que devemos é manter viva a memória de quem sucumbiu sob a bota da ditadura.

Vivendo no Brasil há muitos anos, quando veio em busca de ares de liberdade, e ao vivenciar a perseguição e morte de inúmeros intelectuais, seus companheiros, ele desabafa: "Quando passo por um café de Buenos Aires, vejo meus amigos que não estão sentados aí. Quando me convidam a dar uma aula na Universidade de Buenos Aires, de repente, encontro-me com um sobrevivente ou com um exilado que retornou, nos abraçamos, olhamos em volta e vemos que os jovens estão esperando que comecemos a dar nossa aula. Começamos a falar para os jovens, e, sem que eles o saibam, também falamos para essa geração (a nossa) ausente e congelada no meio da sala como um puro fantasma". Em seu ponto de vista, só se pode falar em um "esfriamento", e não em uma reconciliação nacional: "O que ocorre é que as pessoas que passaram por isso, e sobreviveram, inevitavelmente morrerão. E, sem dúvida, os sentimentos dos mortos são bem mais frios que os dos vivos". Na entrevista concedida com exclusividade à IHU On-Line, por e-mail, Jerusalinsky debate, também, a profusão de filmes que retratam os horrores das ditaduras e do Holocausto. "Os filmes, como os livros, podem mostrar a realidade sem realizá-la".

Jerusalinsky é psicanalista, mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e doutor em Educação e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo - USP. Além disso, é membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e da Association Lacaniènne Internationale. De sua vasta bibliografia, destacamos La formación del psicoanalista (Buenos Aires: Editora Nueva Visión, 1989), Psicanálise e desenvolvimento infantil (2. ed. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998), Para entender al niño, claves psicoanalíticas (Quito: Ediciones ABYA-YALA, 2003) e Quem fala na língua?: sobre as psicopatologias da fala (Bahia: Ágalma, 2004).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Do ponto de vista da psicanálise, de que forma podemos compreender o lado oculto do ser humano, o mal que é contido a duras penas e que floresce em ocasiões como o Holocausto e nas ditaduras sangrentas da América Latina, por exemplo?

Alfredo Jerusalinsky - A civilização nasce por um pacto de não agressão entre os irmãos que assassinaram o pai da horda primitiva, estabelecendo regras para a circulação das fêmeas. Se, a partir desse ato, a vigília da fratria passou a ser um pouco mais tranquila, doravante os sonhos daqueles homens primitivos ficaram bem mais agitados: o pai morto, ora transformado num agressor intangível, retornava naqueles desde as sombras imaginárias. Homenagens, rituais, sacrifícios, autoflagelações, cerimônias e oferendas foram inventadas para apaziguar sua fúria e acalmar suas vinganças. Em todas as religiões, os deuses, em algum momento, sofrem uma ofensa, e os homens, causadores dela, tornam-se culpados e merecedores de castigo e constrangimento. Perdas, privações e sofrimentos representam o poder desses deuses assim como suas dádivas e premiações. Capazes de impor as dores mais atrozes e os prazeres mais almejados, é, no mínimo, curioso o quanto os deuses das mais diversas culturas possuem as mesmas paixões que caracterizam os humanos. Por isso, sempre ficou tão fácil estabelecer representantes dos deuses na Terra, e justificar os atos desses representantes como intermediários das vontades de Deus. O Estado nasce como representante desse Grande Outro, Pai onírico pleno de autoridade porque lhe devemos a vida. Não a nossa, mas a dele (leve-se em conta que qualquer Estado se considera no direito de exigir de seus cidadãos que defendam sua existência ainda ao custo de suas vidas). Esta estrutura inconsciente de características paranóicas que define o modo do laço social civilizado facilita, naqueles que acedem a posições de poder, o desdobramento de delírios messiânicos e a obediência cega de seus comandados. A posição messiânica torna o sujeito em questão representante da única versão possível do bem. Portanto, para ele, toda e qualquer diferença que seja meramente enunciada constitui um mal radical que deve ser extirpado. Tal a posição do Führer Adolf Hitler na Alemanha, e do Presidente General Rafael Videla na Argentina, ou de Pinochet no Chile.

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