quarta-feira, 19 de maio de 2010

Sobre os contos de fada


A função das narrativas maravilhosas da tradição oral poderia ser apenas a de ajudar os habitantes de aldeias camponesas a atravessar as longas noites de inverno. Sua matéria? Os perigos do mundo, a crueldade, a morte, a fome, a violência dos homens e da natureza. Os contos populares pré-modernos talvez fizessem pouco mais do que nomear os medos presentes no coração de todos, adultos e crianças, que se reuniam em volta do fogo enquanto os lobos uivavam lá fora, o frio recrudescia e a fome era um espectro capaz de ceifar a vida dos mais frágeis, mês a mês.
As modernas versões dos contos de fada, que encantaram tanto nossos antepassados quanto as crianças de hoje, datam do século XIX. São tributárias da criação da família nuclear e da invenção da infância tal como a conhecemos hoje. Isto implicou em:
1: a progressiva exclusão dos pequenos do mundo do trabalho, na medida em que a Revolução Industrial criou espaços de produção separados do espaço familiar (o segundo era característico das organizações do trabalho artesanal e campesino)
2: os ideais iluministas e os novos códigos civis trazidos pelas revoluções burguesas passaram a reconhecer as crianças como sujeitos, com direito tanto a proteções legais específicas quanto ao reconhecimento de uma subjetividade diferenciada da dos adultos.
Assim, a infantilização das narrativas tradicionais, transformadas nos atuais “contos de fadas”, é concomitante à criação de um mundo próprio da criança e ao reconhecimento de uma “psicologia infantil”, da qual mais tarde a psicanálise viria a se destacar radicalmente.
Os autores deste Fadas no divã, o casal Diana Lichstenstein Corso e Mario Corso, sabem de tudo isso. Na linha inaugurada pelo psicanalista austríaco Bruno Bettelheim , afirmam que a capacidade de sobrevivência dos melhores contos de fadas, que continuam encantando crianças das gerações dos computadores, videogames e jogos de RPG, consiste em seu poder de simbolizar e “resolver” os conflitos psíquicos inconscientes que ainda dizem respeito às crianças de hoje. A leitura da pesquisa detalhada e delicada que o casal Corso conduz ao longo deste livro nos faz ver que o atual império das imagens não retirou a força das narrativas orais.
É provável que as técnicas de transmissão oral, que na falta de imagens visuais apelam ao poder imaginativo dos pequenos ouvintes, sejam até hoje capazes de conectar as crianças ao elemento maravilhoso e à multiplicidade de sentidos que caracterizam o mito em todas as culturas e em todas as épocas formando, na expressão dos autores, um “acervo comum de histórias” através do qual a humanidade reconhece a si mesma.
Neste sentido os autores, que também são pais e contadores de histórias, têm a sabedoria de não esgotar pela explicação psicanalítica todos os elementos que compõem a magia dos contos de fadas. Pudera: Diana e Mario Corso não entraram no mundo das histórias infantis por puro interesse intelectual; entraram conduzidos pelas mãos de suas duas filhas. Por isso mesmo, sabem o quanto é ingênua a pretensão de se propor uma única chave de entendimento para as histórias, uma vez que as crianças sabem utilizar os contos à sua maneira e segundo suas necessidades: “como era usado o mito nas sociedades antigas. (...) A criança é garimpeira, sempre procurando pepitas no meio do cascalho numeroso que lhe é servido pela vida”. Além disso, como psicanalistas, compartilham da paixão da psicanálise pela fantasia, resolutiva de conflitos, constitutiva de identidades, criadora de espaços psíquicos tão reais e potentes quanto a dita realidade da vida. Os psicanalistas levam a infância a sério. No caso de Diana e Mário Corso, à paixão pelo universo infantil soma-se o gosto literário pelos contos de fada. Com isso, os autores cumprem a mais importante das cinco condições propostas por Fernando Pessoa para um crítico literário: a simpatia.
Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar. A atitude cauta, irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da primeira condição para poder interpretar .
Munidos de indiscutível simpatia por seu objeto, na interface entre a psicanálise e a literatura, os autores vêm contribuir com a ousada proposta de preencher um vazio na área da crítica de literatura infantil no Brasil.
Diana e Mario Corso não são tradicionalistas. Reconhecem que, nas últimas décadas, o poder das comunicações no mundo globalizado acelerou um trabalho de transmissão de histórias que levou séculos de tradição oral, no ocidente. A extensa análise apresentada neste livro contempla, desde os tradicionais contos de fadas coletados na Europa pelos irmãos Grimm e por Charles Perrault, até os atuais e cinematográficos Harry Potter, Turma da Mônica e Senhor dos Anéis, encerrando com os heróis dos melhores cartuns contemporâneos: Mafalda, Peanuts e Calvin. Segundo os autores, do ponto de vista do ouvinte infantil, não faz muita diferença se a história é passada ou contemporânea. Os contos que aparentemente não correspondem a questões do mundo atual interessam à criança, sempre aberta a todas as possibilidades da existência e capaz de identificar-se com os personagens mais bizarros e as narrativas mais extravagantes. Como a criança ainda não delimitou as fronteiras entre o existente e o imaginoso, entre o verdadeiro e o verossímil (fronteiras estabelecidas, em parte, pelo recalque das representações inconscientes), todas as possibilidades da linguagem lhe interessam para compor o repertório imaginário de que ela necessita para abordar os enigmas do mundo e do desejo.[..]

Maria Rita Kehl

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